domingo, 1 de outubro de 2023

Mente no Céu, e a compaixão como sustentação do corpo na terra

 


Mente no Céu[1], e a compaixão como sustentação do corpo na terra[2]

 

Em nossa jornada de autoconhecimento ou caminhada espiritual, é muito comum cairmos na armadilha de nos desapegarmos das coisas e das pessoas amparado por um certo discurso de amadurecimento ou evolução pessoal.

Essa bandeira do desapego, em muitos casos, se torna danosa para o indivíduo, pois a partir dela, sua atuação no mundo pode vir a tornar-se uma prática não do verdadeiro desapego, mas sim da prática da indiferença.

Nas tradições Budistas, Taoistas e imagino que de outras formas epistemológicas transcendentalistas no que diz respeito a sua maneira em compreender a experiência humana, se fala na conquista do céu, esse céu interior de uma mente sábia e pacífica consigo e com os outros; e da conquista dos pés na terra, onde podemos compreender como a conquista do ser em se colocar diante das experiências terrenas, em hipótese alguma negando-as. Por isso, aforismos que transmitam ideias como: “ter a cabeça no céu, sem perder os pés na terra”, ou até mesmo uma inversão dessa afirmação onde se diz: “a cabeça está na terra e os pés andam pelo céu”, são recorrentes, em trechos de versos (sutras) e textos de tradições espirituais orientais.

Em essência, as duas afirmações, estão expressando o sentido de não nos perdemos em uma compreensão simplista de céu, muitas das vezes arraigadas por falas e práticas de um suposto desapego, mas que em realidade são apenas formas de não se conectar com as próprias experiências vividas transformando-as em verdadeiras práticas de indiferenças. Segundo alguns ensinamentos Budistas, a indiferença seria então, o lugar extremo oposto a compaixão.

Para que o óbvio seja dito, é também claro, que se perder apenas na terra, reduzindo a experiência de ser apenas ao vivido em meio ao mundo objetificando-o, coisificando-o, não nos levará a grandes amadurecimentos, pois para além de mim e do objeto, existe uma dimensão da relação que se estabelece no encontro, que é por si, subjetiva e espiritual ou seja, não coisificável.   

Penso que temas tão caros à distintas tradições espirituais como: amor, compaixão e respeito; estão nos alertando sim, à qualidades do céu, do espirito ou seja, das virtudes e da ética humanas, mas que sua operação só pode manifestar-se na experiência do encontro com o outro; pois, como eu posso sentir e viver compaixão se não existe um outro e um contexto, para o qual eu vivencie estas qualidades?

Nesse sentido, podemos afirmar, que diametralmente oposto ao entendimento distorcido da negação ao mundo, da terra, para alcançar as qualidades do céu, através do desapego ingênuo, o que de fato nos direciona ao céu, é sim a consciência das suas qualidades, mas a compreensão que esse só pode existir por estar em comunhão com a terra, ou seja, a Mente verdadeiramente no Céu só pode vir a operar se a compaixão do ser sustenta-se com seu corpo na terra.

Me entenda bem, que em hipótese alguma, eu estou aqui desvalidando o desapego de coisas terrenas que nos adoecem. Alguns ascetismos como por exemplo, deixar de comer algo que lhe está causando danos à saúde, mesmo que você deseje-o, podem ser adequados exemplos de desapegos dos quais precisaremos nos submeter, portanto, o que mais quero frisar aqui, é que terra e céu quando compreendidos como coexistentes e interdependentes, não operam a partir de rígidas dualidades, promovedoras de ascetismos repressores do ser.

Penso que talvez, seja aqui, o terreno propício e fértil para tantas loucuras que ouvimos dizer em nosso de Deus, das religiões, de seitas e até mesmo do ascetismo material, praticado pelos sistemas neoliberais que transformaram o acumulo de bens a uma nova forma de adoração; pois no culto ao ter, contemplamos com mais fervor uma Ferrari passando em uma avenida do que a água que flui no curso de um rio. Porém, deveríamos nos perguntar sempre: Qual em essência é mais importante para nós? O que nos fez chegar até aqui, para pensarmos dessa maneira?

Portanto, compreendo que um honesto caminhar com os pés na terra e a cabeça no céu, só podem vir acontecer, quando ao sermos permeados por tudo aquilo que atravessa em nosso campo de experiências, ocorra, sem com que neguemos o vivido em nome de alguma fórmula de um céu regida por ingênuas formas de desapego. Essa, é apenas uma maneira infantil de espiritualidade que sustentada pelo medo, está longe de querer percorrer terrenos áridos como é no caso o do amor e de todas as qualidades do céu que possamos praticar.

 

@professormichelalves



[1] Tudo que eu vir a chamar de céu nesse texto, eu estarei me referindo àquilo que os budistas chamam de ”Paramitas” ou perfeições, que nada mais é do que estas qualidades, virtudes ou capacidades humanas de vivenciar uma verdadeira e honesta paz consigo e com os outros.

[2] Tudo quer eu vir a chamar de terra nesse texto, diz respeito a condição do ser em comunhão com o mundo, vivenciando-o, sentindo-o, sendo parte desse e em hipótese alguma o negando, ou seja, compreendendo a sua condição frágil, vulnerável e perecível de ser um animal vivente, por mais espiritual que se entenda enquanto ser em essência, não negando em hipótese alguma a sua condicionalidade enquanto natureza viva na terra. 


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