Mente
no Céu[1], e a compaixão
como sustentação do corpo na terra[2]
Em
nossa jornada de autoconhecimento ou caminhada espiritual, é muito comum cairmos
na armadilha de nos desapegarmos das coisas e das pessoas amparado por um certo
discurso de amadurecimento ou evolução pessoal.
Essa
bandeira do desapego, em muitos casos, se torna danosa para o indivíduo, pois a
partir dela, sua atuação no mundo pode vir a tornar-se uma prática não do
verdadeiro desapego, mas sim da prática da indiferença.
Nas
tradições Budistas, Taoistas e imagino que de outras formas epistemológicas transcendentalistas
no que diz respeito a sua maneira em compreender a experiência humana, se fala
na conquista do céu, esse céu interior de uma mente sábia e pacífica consigo e
com os outros; e da conquista dos pés na terra, onde podemos compreender como a
conquista do ser em se colocar diante das experiências terrenas, em hipótese
alguma negando-as. Por isso, aforismos que transmitam ideias como: “ter a
cabeça no céu, sem perder os pés na terra”, ou até mesmo uma inversão dessa
afirmação onde se diz: “a cabeça está na terra e os pés andam pelo céu”, são
recorrentes, em trechos de versos (sutras) e textos de tradições espirituais
orientais.
Em
essência, as duas afirmações, estão expressando o sentido de não nos perdemos
em uma compreensão simplista de céu, muitas das vezes arraigadas por falas e
práticas de um suposto desapego, mas que em realidade são apenas formas de não
se conectar com as próprias experiências vividas transformando-as em verdadeiras
práticas de indiferenças. Segundo alguns ensinamentos Budistas, a indiferença seria
então, o lugar extremo oposto a compaixão.
Para
que o óbvio seja dito, é também claro, que se perder apenas na terra, reduzindo
a experiência de ser apenas ao vivido em meio ao mundo objetificando-o, coisificando-o,
não nos levará a grandes amadurecimentos, pois para além de mim e do objeto,
existe uma dimensão da relação que se estabelece no encontro, que é por si,
subjetiva e espiritual ou seja, não coisificável.
Penso
que temas tão caros à distintas tradições espirituais como: amor, compaixão e
respeito; estão nos alertando sim, à qualidades do céu, do espirito ou seja,
das virtudes e da ética humanas, mas que sua operação só pode manifestar-se na
experiência do encontro com o outro; pois, como eu posso sentir e viver
compaixão se não existe um outro e um contexto, para o qual eu vivencie estas
qualidades?
Nesse
sentido, podemos afirmar, que diametralmente oposto ao entendimento distorcido
da negação ao mundo, da terra, para alcançar as qualidades do céu, através do
desapego ingênuo, o que de fato nos direciona ao céu, é sim a consciência das
suas qualidades, mas a compreensão que esse só pode existir por estar em
comunhão com a terra, ou seja, a Mente verdadeiramente no Céu só pode vir
a operar se a compaixão do ser sustenta-se com seu corpo na terra.
Me
entenda bem, que em hipótese alguma, eu estou aqui desvalidando o desapego de
coisas terrenas que nos adoecem. Alguns ascetismos como por exemplo, deixar de
comer algo que lhe está causando danos à saúde, mesmo que você deseje-o, podem ser
adequados exemplos de desapegos dos quais precisaremos nos submeter, portanto,
o que mais quero frisar aqui, é que terra e céu quando compreendidos como
coexistentes e interdependentes, não operam a partir de rígidas dualidades, promovedoras
de ascetismos repressores do ser.
Penso
que talvez, seja aqui, o terreno propício e fértil para tantas loucuras que
ouvimos dizer em nosso de Deus, das religiões, de seitas e até mesmo do
ascetismo material, praticado pelos sistemas neoliberais que transformaram o
acumulo de bens a uma nova forma de adoração; pois no culto ao ter,
contemplamos com mais fervor uma Ferrari passando em uma avenida do que a água
que flui no curso de um rio. Porém, deveríamos nos perguntar sempre: Qual em
essência é mais importante para nós? O que nos fez chegar até aqui, para
pensarmos dessa maneira?
Portanto,
compreendo que um honesto caminhar com os pés na terra e a cabeça no céu, só
podem vir acontecer, quando ao sermos permeados por tudo aquilo que atravessa
em nosso campo de experiências, ocorra, sem com que neguemos o vivido em nome
de alguma fórmula de um céu regida por ingênuas formas de desapego. Essa, é
apenas uma maneira infantil de espiritualidade que sustentada pelo medo, está
longe de querer percorrer terrenos áridos como é no caso o do amor e de todas
as qualidades do céu que possamos praticar.
@professormichelalves
[1] Tudo que eu vir a chamar de céu
nesse texto, eu estarei me referindo àquilo que os budistas chamam de ”Paramitas”
ou perfeições, que nada mais é do que estas qualidades, virtudes ou capacidades
humanas de vivenciar uma verdadeira e honesta paz consigo e com os outros.
[2] Tudo quer eu vir a chamar de terra
nesse texto, diz respeito a condição do ser em comunhão com o mundo,
vivenciando-o, sentindo-o, sendo parte desse e em hipótese alguma o negando, ou
seja, compreendendo a sua condição frágil, vulnerável e perecível de ser um
animal vivente, por mais espiritual que se entenda enquanto ser em essência,
não negando em hipótese alguma a sua condicionalidade enquanto natureza viva na
terra.